domingo, setembro 24, 2006

Da memória histórica

É uma das polémicas do momento aqui no nosso país de acolhimento. Ao contrário do torrãozinho natal, onde uma revolução e os anos quentes que se lhe seguiram parecem ter resolvido a crise da adolescência da democracia, a "transição pacífica" aqui em Espanha deixou sequelas que agora têm de se resolver no divã do psicanalista.
Só agora, 30 anos depois, é que o governo PSOE (que governou mais de uma década nos idos de 80) resolveu abrir o armário e sacudir o pó aos esqueletos do franquismo. Com uma muito debatida e criticada Lei da Memória Histórica, pretende-se eliminar os últimos vestígios da ditadura e render homenagem às suas vítimas. Parece estranho, mas só agora é que se retiram as últimas estátuas de Franco e se começa a proceder à "limpeza" de placas, monumentos e nomes de ruas que evocam eventos ou figuras gradas do regime. O que fazer com o assustador Vale dos Caídos ainda está por se saber, mas pelo menos ficam proibidas as celebrações franquistas no local.
A dita lei abre a possibilidade dos herdeiros dos assassinados durante e depois da Guerra Civil receberem indemnizações, apoios para localizarem restos mortais inumados em valas comuns, oportunidades para reabilitar o bom nome dos familiares.
Porque, ao contrário dos "brandos costumes" desse lado da fronteira (sem esquecer no entanto a PIDE, o Tarrafal, a tortura e os assassinatos políticos), para além do morticínio expectável da Guerra Civil, o franquismo foi um regime bem mais duro e sanguinário. Centenas de milhares de fuzilados durante e logo a seguir à guerra, campos de concentração que duraram até aos anos 60, a pena de morte vigente e aplicada até aos anos 70 (está agora em cartaz um filme sobre Salvador Puig Antich, anarquista garroteado em 1974, aos 25 anos).
O que é estranho é a celeuma que esta lei está a provocar. Para a esquerda, não vai suficientemente longe. Para o PP, herdeiro directo do franquismo (coisa que também me causa grande estranheza, como é possível que um partido transite assim de regime), não há razão nenhuma para andar a destapar a caixa de Pandora, que as coisas estavam muito bem como estavam, que o que lá vai lá vai...
Mas a própria sociedade aparece dividida. Apesar de se ter passado quase um século, apareceram centenas de pessoas à procura dos locais de enterramento dos familiares, enquanto outros se opõem à retirada dos símbolos franquistas. Nos jornais apareceram obituários de resistentes republicanos que morreram há décadas, porque na altura era proibida a sua publicitação. Mas ao seu lado nas necrologias, familiares dos mortos franquistas fazem publicar anuncios semelhantes em homenagem às "vitimas dos vermelhos". A diferença é que estes tiveram 4 décadas para os celebrar.
À suivre...

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